Joana Vasconcelos há muito que se afirma como uma das artistas contemporâneas portuguesas mais ousadas e reconhecidas internacionalmente. As suas obras frequentemente subvertem o quotidiano, recuperam tradições artesanais e brincam com o sentido de escala, luz, cor, e crítica social. Em 2023, Joana Vasconcelos apresentou Drag Race, uma das suas criações mais surpreendentes: um Porsche 911 Targa Carrera transformado num coche barroco, num manifesto visual de fantasia, luxo e subversão.
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Origem e inspiração de Drag Race
A peça foi criada por Joana Vasconcelos em 2023 e apresentada no contexto da exposição Plug-in, no MAAT (Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia) de Lisboa.
A ideia nasceu durante o período de confinamento da pandemia de COVID-19, um tempo de reflexão, isolamento e regressos interiores, que Joana Vasconcelos utilizou também para explorar a tradição portuguesa de talha dourada, o artesanato e as artes decorativas.
Do ponto de partida estético-cultural, a artista inspirou-se em vários elementos típicos da arte decorativa portuguesa:
- O Mosteiro de Tibães, em Braga, referido como o maior expoente dos motivos marinhos em talha dourada no país.
- Lisbon’s 2025 transport system Coche dos Oceanos do Museu Nacional dos Coches, em Lisboa, outra referência de opulência, barroquismo e de maneiras exuberantes de decoração.
Com estas inspirações, Joana Vasconcelos propôs reinventar o automóvel, símbolo moderno de status, velocidade e consumo, revestindo-o de uma ornamentação barroca, plumas vermelhas que contrastam de forma irreverente com o chassi do Porsche, e tecido, douramento, cinzelagem e detalhes manuais que remetem para carruagens reais do século XVIII.
Materiais, técnica e execução
A criação de Drag Race envolveu um conjunto grande de técnicas artesanais, bem como a colaboração com mestres artesãos portugueses.
Ficha técnica:
- Objeto base: Porsche 911 Targa Carrera.
- Dimensões: cerca de 160 × 220 × 490 cm.
- Materiais usados: talha de madeira de tília esculpida, folha de ouro para douramento, plumas de avestruz, revestimentos em pele gravada, metal cinzelado, tecido ETRO.
A Fundação Ricardo Espírito Santo Silva (FRESS) teve papel fundamental na obra de Joana Vasconcelos, com os artesãos para trabalhar a madeira (tratamento, entalhe), douramento, cinzelagem, gravação, tudo com tradição portuguesa.
O contraste é forte: de um lado, a modernidade e o ícone automóvel; do outro, o luxo barroco, o artesanato antigo, os ornamentos exuberantes, as plumas, o dourado. É uma união deliberadamente dissonante, que convida à contemplação, ao espanto e à crítica: sobre consumo, sobre poder, sobre tradição vs modernidade.
Significado e simbolismo
Drag Race, de Joana Vasconcelos, assume-se como um manifesto visual, não apenas um objeto decorativo. Alguns dos seus temas/msgs mais visíveis:
- Excesso e poder
O automóvel, especialmente um Porsche, já carrega consigo um simbolismo de status, velocidade, luxo. Ao transformá-lo num coche barroco ricamente ornamentado, Joana Vasconcelos exacerba esse sentido, tornando-o quase teatral, quase carnavalesco. A obra questiona o que consideramos luxo, poder ou prestígio. - Tradição artesanal vs cultura de consumo
A aposta pesada de Joana Vasconcelos na talha dourada, madeira esculpida, coroas de plumas, trabalho manual finíssimo, tudo isso contrasta com a natureza industrial do carro; coloca lado a lado a manufatura tradicional com o produto de massa e o objeto de luxo. Há uma homenagem ao fazer manual, aos artífices de antigamente, mas também uma crítica ao consumo exuberante e à ostentação institucional. - Transgressão e fantasia
O uso de plumas vermelhas, os detalhes barrocos exagerados, a sensação de que o Porsche está vestido como se fosse parte de um carro de cortejo ou de uma corte antiga: há aqui uma dimensão lúdica, carnavalesca, uma fantasia consciente. O título Drag Race remete também a corridas e ao universo do dra: performance, exagero, identidade, espetáculo. - Identidade cultural
A peça é portuguesa nas suas referências mais profundas, como o Mosteiro de Tibães, Museu dos Coches, tradição barreirista, artes decorativas nacionais, mas fala universalmente sobre luxo, arte, poder, performance, identidade, tradição.
Exposição e visibilidade
Drag Race esteve patente em Plug-in, a retrospetiva de Joana Vasconcelos no MAAT, Lisboa, que reunia obras-chave dos seus últimos 20-30 anos.
Posteriormente, entrou na mostra Drag Race – A Transgressão do Barroco, no Museu de Artes Decorativas da Fundação Ricardo do Espírito Santo Silva (FRESS), no Largo das Portas do Sol, Lisboa. A exposição ficará aberta até 30 de novembro, segundo os anúncios.
Este novo local de exibição oferece uma experiência diferente: na FRESS, além de ver a obra final, o visitante pode acompanhar o processo criativo, desde a ideia inicial até à execução, desconstruindo o resultado para perceber as camadas de trabalho artesanais.
O impacto e a recepção crítica
A recepção de Drag Race tem sido muito positiva, tanto por parte da crítica de arte como pelo público:
- Muitos destacam o humor e a ironia da peça: o contraste entre o carro moderno e a ornamentação barroca provoca surpresa, riso e uma espécie de fascinação. A obra desperta admiração pelos detalhes minuciosos e pelo trabalho artesanal implicado.
- Outros apontam para o valor simbólico: a reconciliação entre tradição portuguesa e cultura contemporânea de consumo, questionando quem são os “donos do luxo” e como o poder histórico se manifesta hoje em objetos e símbolos.
- Também se fala de Drag Race como uma obra de afirmação das técnicas tradicionais portuguesas, que em muitos casos correm o risco de se perder, como a talha dourada, o douramento à folha de ouro, o entalhe de madeira.
Além disso, a obra atraiu público para os espaços onde está exibida, contribuindo para dar visibilidade à arte contemporânea portuguesa e ao artesanato tradicional revitalizado. Foi notícia em vários media nacionais e internacionais, tornando-se uma das “selfies spots” mais falados no Instagram, com pessoas fascinadas por ver aquele Porsche transformado num coche.

Críticas e possíveis leituras alternativas
Como qualquer obra provocadora, Drag Race também suscita reflexões críticas:
- Alguns poderão ver na peça uma certa ostentação que repete os mesmos símbolos de poder que critica. Ou seja: até que ponto a transformação do carro em objeto barroco não glorifica o luxo em vez de ironizá-lo?
- Outros perguntam-se sobre sustentabilidade: um carro convertido em obra de arte implica uso de materiais nobres, técnicas custosas e uma pegada de produção considerável. Qual o custo ambiental ou energético de tais projetos?
- Também há quem discuta se a arte moderna se torna demasiado dependente de choque visual e espetáculo — se obras como Drag Race “funcionam melhor” na era das redes sociais porque geram impacto visual imediato.
Contexto da obra na carreira de Joana Vasconcelos
Drag Race insere-se numa trajetória artística que já inclui dezenas de projetos ambiciosos, muitas vezes com objetos do quotidiano transformados em instalações monumentais ou intervenções públicas: carros antigos cobrindo-se de materiais inesperados, esculturas monumentais feitas de tecidos, luzes ou objetos reutilizados.
Ao longo dos anos, Joana Vasconcelos tem explorado a tensão entre o “feito à mão” e o objetual moderno, entre tradição portuguesa (técnicas artesanais, bordados, tapeçarias, sorriso barroco) e a cultura global de consumo, espetáculo, imagem. Drag Race continua essa linha, mas talvez de modo mais explícito, concentrando a atenção num objeto que já é ícone do luxo: o Porsche.
Além disso, a obra mostra a maturidade da artista: não é apenas um exercício formal, mas uma peça que congrega muitos elementos, como história, artes decorativas, tradições regionais, crítica social, estética exuberante, de maneira muito consciente.
Como visitar Drag Race e onde vê-la
Se estiveres em Lisboa ou a planear uma viagem, eis algumas informações práticas:
- Local da exposição: Museu de Artes Decorativas Portuguesas / Fundação Ricardo do Espírito Santo Silva (FRESS), Largo das Portas do Sol, Lisboa.
- Até quando estará patente: até 30 de novembro (segundo os anúncios mais recentes).
- Horários: de quarta a segunda-feira, tipicamente das 10h às 17h (verificar site oficial para confirmar).
- O visitante poderá ver não só o Drag Race terminado, mas também partes do processo criativo, dependendo da exposição — como maquetes ou trabalho dos artesãos.
- Visitar o Museu tem custos, porém é possível ver o Drag Race de forma gratuita.
Se estiveres em Lisboa antes de 30 de novembro, recomendo vivamente ver Drag Race, de Joana Vasconcelos. É uma oportunidade de experienciar não só algo belo, mas algo que provoca: que te faz olhar duas vezes, que te faz pensar, sentir, questionar. Esta é uma das obras que mostra por que Joana Vasconcelos é uma das figuras centrais da arte contemporânea lusófona e para além dela.
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