Os tubarões povoam o Mediterrâneo há milhões de anos, existindo até pinturas de tubarões em vasos que precedem o império romano. No entanto, o Mediterrâneo tornou-se no mar mais perigoso do mundo para estes animais, à medida que o consumo de carne de tubarão aumenta.
Muitas pessoas dirão que nunca comeram carne de tubarão e nunca a viram em restaurantes. No entanto, a carne de tubarão é, geralmente, comercializada sob o nome de cação e tintureira. A Sopa de Cação, um prato tradicional do alentejano, é muito popular, mas nem toda a gente sabe que o cação nada mais é do que um tubarão ou raia.
Segundo a WWF, mais de metade das espécies de tubarões e raias que vivem no Mediterrâneo estão ameaçadas, sendo quase um terço delas pescadas perto do nível de extinção. De acordo com o relatório da WWF “Sharks in Crisis: A call to Action for the Mediterranean”, 20 espécies do Mediterrâneo estão classificadas como “Criticamente Ameaçadas”, o que significa que enfrentam um risco extremamente alto de extinção na natureza.
A poluição e as alterações climáticas podem ter algum impacto neste cenário, segundo Simone Niedermüller, da WWF Mediterranean Marine Initiative, citada pelo The Guardian. Mas muitas das evidências científicas apontam para outro culpado. “A pesca é claramente a principal ameaça.”
Em 2019, Giuseppe Di Carlo, diretor da WWF Mediterranean Marine Initiative, afirmava que: “os tubarões correm o risco de desaparecer do Mediterrâneo. O seu rápido declínio é o sinal mais grave do estado do nosso mar e de práticas pesqueiras irresponsáveis. Todos os países mediterrânicos são responsáveis por isso. Os tubarões fazem parte do nosso mar e cultura há milhares de anos, precisamos agir rapidamente para garantir que eles permaneçam no futuro”.
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Consumo de carne de tubarão: Animais em risco
As capturas de tubarão-azul na costa mediterrânica de Espanha dobraram entre 2012 e 2016, de acordo com a WWF. Embora poucas pescarias no Mediterrâneo tenham como alvo direto os tubarões, os tubarões costumam ser capturados acessoriamente na procura por presas mais lucrativas, como o atum e o peixe-espada.
Segundo o relatório “Sharks in Crisis: A call to Action for the Mediterranean”, os pescadores mediterrâneos usam palangres de superfície para capturar atum e espadarte altamente apreciados – mas pelo menos 15 espécies de tubarões e raias são encontradas entre as capturas acessórias, perfazendo 10-15% da biomassa total capturada. No Mar de Alboran, mais de um terço de toda a pesca foi de tubarões e raias.
No passado, as equipas de pescadores colocavam a maioria dos tubarões de volta no mar. No entanto, com a diminuição das capturas de outras espécies-alvo, os pescadores começaram a procurar pescar mais tubarões para complementar os seus rendimentos decrescentes.
Um estudo do Centro Comum de Pesquisa da União Europeia concluiu que quase todos os stocks de peixes do Mediterrâneo estão sobreexplorados e que nos últimos 50 anos a região perdeu um terço dos seus peixes.
Comem cação ou tintureira? É tubarão
O nome tubarão normalmente não aparece nos menus ou vitrines de peixes, sendo normalmente usada a designação de cação, que se refere a várias espécies diferentes, ou a tintureira, que é o tubarão-azul. Desta forma, muitos consumidores não sabem que alguns dos produtos que estão a comprar são na verdade tubarões. Desta forma, o consumo de carne de tubarão mantém-se mais elevado, apesar da pouca percepção dos consumidores.
Quando as espécies são mal identificadas e designadas por nomes genéricos, pode haver mais facilmente comércio e consumo de espécies ameaçadas e, em alguns casos, até protegidas por lei.
Nos piores casos, a carne de tubarão é comercializada de forma fraudulenta como espécies mais caras, como o peixe-espada. O comércio é lucrativo. Um quilo de tubarão azul pode ser vendido por cerca de um euro, e o peixe-espada vale até 12 vezes mais. “As margens são enormes”, diz Pierluigi Carbonara, um biólogo marinho que trabalha com os pescadores de Monopoli e o WWF na Puglia, citado pelo The Guardian.
Um estudo da Universidade de Catania descobriu que 15% das amostras de peixe-espada analisadas continham vestígios de outros peixes. Além de serem ilegais, estas fraudes podem expor os consumidores a riscos à saúde, pois o tubarão pode conter níveis mais altos de mercúrio e outros metais do que outras espécies.
Ausência de regulamentação
A maior parte da pesca global de tubarões não é regulamentada. Em 2013, a União Europeia apertou as medidas de forma a proibir o finning, ou seja, a prática de cortar as barbatanas de um tubarão – que são consideradas uma iguaria em alguns países asiáticos – e atirar o corpo vivo de volta para o mar.
Ou seja, as embarcações em águas da União Europeia, bem como navios da União Europeia fora das águas da UE, não podem remover as barbatanas de tubarões e descartem as carcaças (ou os animais feridos mortalmente enquanto ainda vivos) para deixar espaço no porão para espécies mais lucrativas, como o atum ou peixe-agulha, o que uma prática comum noutros pontos do globo.
A prática de finning não só tem objeções éticas, mas também está a contribuir para declínios dramáticos nas populações de tubarões e raias, em grande parte devido à pesca predatória. Apesar desta medida implementada pela União Europeia ser um ponto positivo e parte do caminho a percorrer, está longe de ser suficiente.
De acordo com as regras existentes, as tripulações só podem desembarcar tubarões com as barbatanas presas, mas o comércio das barbatanas permanece legal, mesmo que sejam de espécies ameaçadas localmente, como o tubarão anequim e o tubarão azul.
Desta forma, a União Europeia continua a ser uma importante fonte de barbatanas obtidas legalmente e, ao alimentar o mercado global, contribui para o agravamento da situação geral. Até à data, a pesca do tubarão na UE não dispõe de um quadro de gestão abrangente, quer a nível europeu quer a nível da Organização Regional de Gestão das Pescas (RFMO), e o Plano de Ação Europeu para os Tubarões está desatualizado e sem metas concretas para a maioria das ações, não permitindo assim medir a implementação e progresso num formato consistente.
Um relatório do Fundo Internacional para o Bem-Estar dos Animais (IFAW), que analisou dados das alfândegas de Hong Kong, Singapura e Taiwan relativos às “importações e exportações de barbatanas e carne de tubarão de 2003 a 2020”, a União Europeia (UE) desempenha um “papel fundamental como fornecedor e comerciante no comércio global de tubarões”, com algumas espécies ameaçadas de extinção.
Durante o período analisado, um “total de 188 368 toneladas de barbatanas de tubarão foram importadas” para Hong Kong, Singapura e Taiwan, indicou a ONG.
“A União Europeia é responsável por quase um terço destas importações (28% em média, 53 407 toneladas) e a participação nas importações de barbatanas aumentou significativamente a partir de 2017, atingindo 45% em 2020”. Espanha (51.795 toneladas métricas), Portugal (642), Países Baixos (621), França (295) e Itália (25) são os principais países exportadores de barbatanas de tubarão. No que diz respeito à carne de tubarão, os principais importadores são Itália, Espanha, Grécia, Bulgária e Chipre, revelou o relatório.
Segundo o relatório da WWF The shark and ray meat network, na última década, as pontes comerciais mais importantes para a carne de tubarão foram entre Japão e Espanha (e vice-versa), Portugal e Espanha, Reino Unido e Espanha, Japão e Panamá, e China e Japão.
Segundo a WWF, estes são os comerciantes que têm a maior influência sobre como a carne de tubarão flui pelos mercados mundiais e devem ser o foco principal de medidas regulatórias, como melhores sistemas de rastreamento e um controlo das atividades piscatórias ilegais, não regulamentadas e não declaradas.
“O comércio mundial à base de tubarões e raias está a esgotar estas espécies, e movimenta mais de quatro mil milhões de dólares anualmente, envolvendo mais de 190 países ou territórios. O valor resultante do comércio de carne de tubarão e raia é atualmente quase o dobro do valor do comércio das suas barbatanas, apesar destas terem muito mais atenção mediática”, explicou Ângela Morgado, diretora executiva da ANP|WWF, citada em comunicado.
“Este comércio é pouco regulado, não transparente e perpetua a exploração destas espécies de uma forma pouco saudável para elas e para nós, já que o equilíbrio do ecossistema depende em larga escala delas”, alerta.
Consumo de carne de tubarão em Portugal
Atualmente, Portugal acolhe 74 espécies de tubarões, mas, 43% encontram-se em risco de extinção, de acordo com a Sea Sheperd. O consumo de carne de tubarão é uma realidade, sendo que, pelo menos, 32 restaurantes em Portugal englobam pratos de carne de tubarão nos seus menus, segundo a mesma organização.
A carne é preparada e servida de várias formas e sob vários nomes. As espécies de tubarão mais consumidas são Perna de moça (Galeorhinus galeus), cação liso (Mustelus mustelus), cação pintado (Mustelus asterias), galhudo malhado (Squalus acanthias), tintureira (Prionace glauca), litão (Galeus melastomus), patar-oxa (Scyliorhinus canicula), sapata (Deania calceus), galhudo (Carcharhinus plumbeus), barroso (Centrophorus granulosus), gata-lixa (Dalatias licha).
A nível do consumo de carne de tubarão em Portugal, destacam-se os vários pratos confecionados com cação, como Açorda, Alhada, arroz, cação no forno, ou tacho, estufado, assado, jardineira de cação, ao vinho, de cebolada, Caldeirada, Ensopado, Massada, Moqueca, Sopa. Assim como com pata roxa: Arroz, Caldeirada, Ensopado, Guisado com massa, com batatas ou com ervilhas; pratos com tintureira: Açorda, Caldeirada, Massada e com pratos com litão/leitão (também conhecido como Cão do monte ou Cademonte): Cataplana, Feijoada, Guisado, Seco (substituto do bacalhau).
Apesar de amplamente consumidos, estudos feitos em Portugal em relação à tintureira e a tubarões de recife indicam que os níveis de metais pesados como o Mercúrio e o Chumbo são superiores aos limites recomendados para consumo humano. Ou seja, o consumo de carne de tubarão pode trazer riscos para a saúde.
A imagem negativa dos tubarões
Segundo Alex Cornelissen, CEO da Sea Shepherd Global, a despreocupação com a proteção e bem estar dos tubarões pode dever-se a uma percepção social negativa que é atribuída a este animal. “Os tubarões são retratados como criaturas horríveis, que nos vão matar- tarefa de que se encarregaram filmes e documentários, fazendo com que hoje não haja preocupação nenhuma pela sua extinção”, declarou durante um painel, na Conferência dos Oceanos.
Para além do consumo de carne de tubarão, a procura do óleo obtido de fígado de tubarão também está a aumentar. Este é considerado como um ingrediente desejável em produtos cosméticos, tais como maquilhagem ou hidratantes.
Os tubarões são animais particularmente vulneráveis e lutam para se recuperar do declínio populacional, causado, em grande parte, pelo consumo de carne de tubarão. Estes animais desempenham um papel fundamental no equilíbrio do ecossistema marinho como controlo de população de outros animais e preservação da biodiversidade, já que mantêm o equilíbrio de população de espécies menores, como peixes e crustáceos, evitando que uma espécie se torne predominantemente abundante e cause danos ao ecossistema.
Também contribuem para a saúde dos restantes peixes no mar, uma vez que muitas vezes se alimentam de espécies doentes e acabam por prevenir uma contaminação coletiva no oceano. Portanto, é importante preservar as populações de tubarões para manter a saúde e equilíbrio do ecossistema marinho. Uma das formas para o fazer é evitar o consumo de carne de tubarão.
A ANP/WWF defende a adoção de medidas que minimizem as principais ameaças e deixa algumas recomendações. A organização recomenda que a qualidade dos dados científicos da pesca seja melhorada e que os países proíbam a captura, comércio e o consumo de espécies ameaçadas. Recomenda também que seja também criada regulamentação mais restrita das espécies comercializadas a nível internacional, e se definam zonas santuário que protejam habitats essenciais e sejam refúgios para as espécies.
Além disso, recomenda aos consumidores que, para além de se absterem de comer as espécies em causa, tenham especial atenção à composição de alguns produtos que existem no mercado, nomeadamente cremes hidratantes ou complexos vitamínicos que contêm esqualeno e óleo de fígado de tubarão.
As escolhas diárias podem estar a afetar a sobrevivência de muitas espécies marinhas. Para além daquilo que os consumidores comem, existe também o consumo dos produtos cosméticos, farmacêuticos, nutracêuticos, para uso industrial, alimentação animal, decoração, entre outros que podem ter impacto direto.