Há um fenómeno curioso que sempre me fez alguma confusão: os viajantes que tiram fotografias de habitantes locais e as partilham, na busca incansável por likes, entre as fotos de paisagens e de monumentos. Não é que seja estranho fotografar pessoas, a questão é que nunca fotografam um sueco, um alemão, um italiano. Nunca!
Um viajante passa três semanas em Itália e tudo que vai partilhar são fotos do coliseu, pratos generosos de massa e aquela antiga pizzaria de Nápoles. Se vai a Paris, fotografa a Torre Eiffel e o Arco do Triunfo. Mas se a pessoa viaja para Guiné, podem esperar fotos de habitantes locais, especialmente crianças.
Vamos supor que tenha sido pedida autorização para fotografar. E relembro que a autorização não pode ser pedida a uma criança, que não pode dar consentimento informado, uma vez que não consegue compreender as implicações de uma fotografia aparentemente inofensiva. Mas, ainda que o consentimento tenha sido dado.. ainda assim, causa-me estranheza.
Imaginem que vão na rua com uma criança – pode ser vosso filho, vosso irmão – e um marmanjo estrangeiro de 40 anos com uma câmara na mão vos aborda para tirar uma foto da criança… Achariam normal?
Se durante as nossas viagens a Londres nunca nos deu vontade de tirar a máquina fotográfica da mochila para fazer um retrato de uma criança inglesa desconhecida que encontramos no metro, porque parece tão banal fazê-lo quando viajamos para países em desenvolvimento?
A questão que eu levanto não está relacionada com a autorização. É óbvio que a autorização tem de ser pedida.
Também não está relacionada com as boas intenções de quem fotografa. Alguns viajantes que admiro fazem-no, por esse motivo me aparecem tantas fotografias deste género no feed, ao ponto de me fazer refletir sobre isto. A minha questão vai além de todo este processo ético e óbvio, todo ele necessário em primeira instância.
É sobre o que leva alguém a querer fazê-lo. A achar que o processo de fotografar um desconhecido e partilhar a sua face é um ato positivo. Quando não o faria na vossa rua. Volto a questionar: como se sentiriam se um turista desconhecido vos abordasse no meio do Chiado para vos tirar uma foto? Ou do vosso filho pequeno? Ainda que o fizesse de forma educada. Não pensariam sobre qual seria a motivação do turista? Não se sentiriam estranhos com a abordagem?
Esta fixação por fotografar pessoas negras não será uma forma moderna dos zoológicos de humanos? Claro que há maior tato, maior respeito, maior noção – e até poderá haver consentimento da pessoa fotografada, como já disse – mas a ânsia de fotografar e partilhar rostos de “povos não europeus” não é muito semelhante àquela que levou a que indígenas e negros africanos fossem exibidos em “exposições etnológicas” no século XIX?
Entenda-se, não estou a comparar o ato de tirar uma foto com uma exposição etnológica, que era um evento altamente degradante. Estou a pedir que reflitam sobre a motivação por trás de ambos. Será que a motivação que levou a ambos não será muito semelhante?
Além disso, estas fotos aparecem muitas vezes com legendas onde, com o disfarce da empatia, se perpetuam estereótipos, se romantiza a pobreza e se desumaniza as pessoas. Com um discursos condescendente e o síndrome do salvador branco perpetuam-se ideias discriminatórias enfeitadas com boas intenções.
A representação de África feita pelos meios de comunicação internacionais parece muitas vezes centrar-se no desastre ou na pobreza. A hashtag #TheAfricaTheMediaNeverShowsYou ilustrou, há uns tempos, como a fotografia convencional afeta negativamente o continente africano.
Com imagens partilhadas por africanos, a hashtag incluía fotos da indústria da moda à indústria cinematográfica, de praias a universidades, e de mesquitas antigas a hospitais modernos. As fotos partilhadas são uma alternativa às fotos mais comuns sobre a pobreza e a fome em África. Que existe. Claro que existe.
Importa acabar com o estereotipo de que todas as pessoas em países em desenvolvimento precisam da caridade do Ocidente. Dos Salvadores Brancos. Ainda que necessitem, será que o melhor que podemos fazer é retratar uma criança sorridente e dizer que existe felicidade na pobreza? Na fome? O melhor que podemos fazer é adotar uma atitude paternalista, escrever uma legenda romântica e expor uma criança em troca de likes? Quem se beneficia desta exposição? Vocês querem mesmo ajudar pessoas ou querem apenas relatar – de uma forma extremamente romantizada – os seus problemas, para assim conseguirem likes?
Se o objetivo é ajudar estas pessoas, o melhor é protegê-las e isso começa com a proteção da sua privacidade.
Vamos tentar que estas fotos não contribuam apenas para o complexo de salvador branco. Os viajantes não são fotojornalistas em missão. A intenção por trás destas fotos nunca deve ser sobre quem as tira.
Se o bom senso nos impede sequer de ponderar tirar fotografias às crianças que brincam no parque infantil ao lado de casa, também nos devia impedir de fotografar uma criança que brinca num país em desenvolvimento. Não pode haver dois pesos e duas medidas. Tragam fotografias das paisagem, das comidas e da cultura, mas deixem as pessoas em paz.
Não sou de fotografar pessoas. E também tenho fotos de miúdos em São Tomé, porque fizeram parte da estadia, mas é uma bela reflexão me fizeste ter agora. Mas eu que vivi em angola sinto isso ainda mais além. Faz-me impressão ouvir as esposas portuguesas dizerem: a minha Amélia (empregada) é como família, come comigo à mesa, dou-lhe as roupas dos meus filhos e convido os filhos dela para virem às festas dos meus. Como se isso mostrasse que são muito solidárias. Aposto que a Amélia preferia antes um horário de jeito e um salário justo.